10.2.14

O Artífice, Capítulo 3

"Mitros!", falou a moça.

O rapaz pareceu desconcertado por um instante, mas logo recuperou a postura.

"Aellai", disse. Olhou a sub-artífice com uma altivez fingida, mas logo se desfez num suspiro. "Quantas vezes já lhe falaram pra não andar lendo? Sua louca."

Ela não reagiu. Tinha os cabelos escuros soltos e descontrolados, emoldurando o rosto suave como vime selvagem.

"Cala a boca", por fim ela falou, como um chicote. "Não fale comigo. Estou em jejum de palavras."

Mitros observou, atônito. "Que acabou de ser quebrado, né?"

Aellai continuou impassível. Então Mitros percebeu que ela nem sequer tinha aberto a boca em primeiro lugar, mas estava usando o Artifício XXII do Livro Aeromante. Conhecido entre os sub-artífices como Vibravoz, o artifício manipulava as vibrações do ar para criar efeitos sonoros.

O garoto apenas deu de ombros, ainda que impressionado com a destreza com que ela simulou a própria voz. Aellai sempre fora neurótica com seu treinamento, e nos momentos de estresse tendia à histeria. O jejum de palavras era mais uma superstição que uma lição propriamente dita, e muitos se submetiam a ela antes das provações. Diziam que manter as palavras dentro da boca ajudava a concentrar os pensamentos em um só lugar e a melhorar o desempenho.

E é claro que Aellai recorreria ao que quer que fosse se houvesse chance de melhorar sua performance, o que era difícil. A moça já era uma das melhores sub-artifícies daquela geração.

"Bom", disse Mitros, "sabe que às vezes o jejum faz mais mal que bem né? Soube que na provação do ano passado um dos garotos da Ala Mykhonos teve um caso sério de flatulência bem na hora mais crítica."

Aellai desvencilhou-se do comentário com a mão e voltou a se concentrar na leitura andante. Mitros acompanhou-a, rumo ao salão onde se daria o momento que moldaria suas vidas para sempre.

30.1.14

O Artífice, Capítulo 2

O futuro Artífice efetuou suas abluções matinais, ainda ruminando seus planos. Abriu a pesada porta de madeira nobre e, imerso em seus pensamentos, começou a caminhar no corredor de pedras, seus passos ecoando no chão frio e sua vista olhando sem ver as paredes gravadas com belas imagens de artífices de outrora. Quando seus olhos pousaram na estátua de Cléiades O Presunçoso, sua mente o havia levado ao dia da batalha final. A peleja em que seu pai havia sido morto. Aquele momento fatídico em que o Rei Aalam teve seu coração trespassado pela espada de seu conselheiro, o nobre Vasag.

Por anos e anos, essa cobra havia feito seu ninho na Corte e invejado o destino de seu melhor amigo. Tal inveja impulsionou uma rebelião, da qual Mitros saiu com vida apenas porque sua ama seca, uma mulher cheia de mistérios, havia sentido alguma alteração no cosmos e tratou de organizar a fuga de seu pequeno protegido, com a ajuda da rainha, a qual, infelizmente, faleceu no processo. Mitros jamais iria esquecer-se do corpo de sua mãe sendo atingido por uma impiedosa lança, enquanto ela escorregava de seu cavalo e, gritava, com seu último sopro de vida: "Vá, Agathe! Corra! Salve meu filho! Cuide de meu bebê!".

Agathe conseguiu cumprir o último desejo da Rainha Ijaya; ela levou o pequeno príncipe para a segurança de um reino distante. Mitros até hoje não se recorda direito como ambos conseguiram sobreviver tão árdua e perigosa viagem. Em seu íntimo, ele crê fortemente que os misteriosos poderes de Agathe tiveram um papel fundamental na preservação de suas vidas. Mas, como tinha apenas cinco anos, o monarca destronado não tem claras memórias da jornada. O que Mitros sabe é que ele e sua cuidadora foram parar no reino de Akikos, onde a rebelião do traidor Vazag não passava de notícias de ontem, e onde a ama assumiu o papel de mãe e cuidou de Mitros como se ele fosse seu.

Jamais, todavia, a fiel serva esqueceu-se do que ocorreu naquele dia desgraçado. Ela implantou o desejo de vingança no coração do pequeno Mitos, o qual cresceu com o único objetivo de retomar o trono de seu pai. E hoje, graças a sua ama e a seus próprios esforços, um passo decisivo seria dado rumo a tão proeminente destino. Com certeza ele encontraria a velha bruxa sentada do lado de fora da Sala de Provações, entre os espectadores e familiares à espera do resultado final. Ela estaria empunhando seu enigmático meio-sorriso, de antemão orgulhosa do desempenho de seu pequeno rei. Mitros desejava mostrar a ela, a essa domadora de forças ocultas, que ele também tinha seus truques. E que tais truques permitiriam o retorno de ambos para casa. Permitiriam que o trono de Vasyklo voltasse a ser ocupado por um representante da milenar dinastia dos Astarot. Permitiriam a sua ving... Pof!

O jovem jamais terminou seus pensamentos revolucionários, pois, em meio à neblina da distração em que caminhava, não tinha se apercebido de uma figura que andava em sua direção e, portanto, nela esbarrou. Ao levantar os olhos, Mitros se surpreendeu olhando para ninguém menos que Aellai, a qual segurava um livro aberto, que provavelmente vinha lendo enquanto atravessava o grande corredor.

23.1.14

O Artífice, Capítulo 1

Mitros acordou sem fôlego de um sonho intranquilo.

Abriu as cortinas do dossel e foi até a sacada de seu quarto. No limite da visão se espalhavam jardins belíssimos, em múltiplos tons de bordô e marfim, como se todas as folhas se despedissem dos últimos dias de inverno. Ilhotas se conectavam por correntes colossais, unidas à cidadela repleta de palácios e torres ao redor. A visão de seu lar era suficiente para acalmá-lo do que quer que tivesse encontrado em seu sono. Atalanta era majestosa, e carregava seus bosques suspensos pelos ares há centenas de anos.

O jovem sub-artífice teria sua última prova naquele dia. Sentia o nervosismo se revirar como uma cobra. Mas era sempre assim. Um frio glacial povoava sua barriga até quase que imediatamente antes das avaliações. Depois ele permitia que se infiltrasse em sua mente, e aí então tudo ficava sob controle, até que a sua provação tivesse chegado ao fim e ele saísse trêmulo de alívio.

Aquele dia seria o último. Se fosse aprovado, poderia vestir o vermelho com todo o orgulho que lhe cabia. Seria um Artífice Real, autorizado pela Triarquia a realizar todo tipo de Artifício.

Artifícios eram complicados e poderosos. Ao compreender suas regras, um bom artífice poderia transformar chumbo em ouro, reparar intestinos de enfermos, derreter areia ou engolir as sombras.

Mitros sabia que ainda havia muito a saber mesmo que recebesse a Medalha de Pigmalião, a valiosa insígnia de um Artíficie Real. O percurso de qualquer artífice era árduo e tortuoso...Mas ele queria mais. Queria melhor.

Iria aprender tudo que precisava, e então seria livre para recuperar o trono de seu pai.

21.1.14

Pontos Agudos

Bem-vindas e vindos aos Contos Pontiagudos. 

O projeto surgiu com a ideia de escrever uma história só com duas cabeças criativas interferindo mutuamente e narrando o mesmo conto, um de cada vez.

Cada arco será composto de capítulos, cada capítulo escrito por um de nós. Quando alguém julgar que a história deverá chegar ao seu final, porá um ponto e o outro autor dará início a um novo arco. 

Este é um jogo de criatividade. Ganha quem estiver aqui.

The game is on!

Hális F.